Como já disse, minha infância foi passada em meio aos anos de chumbo. Mas não cheguei a sentir muito a coisa, não. Pelo menos conscientemente. Mas há fatos que vivi ou presenciei que mostram como eram difíceis aqueles tempos. Na Usina Junqueira, uma vez vi uma cena da qual não me esqueci. Ainda eram os anos 60 (1967, para ser mais exato), quando todos os domingos o coreto da principal praça da Usina Junqueira era o palco da banda local (excelente, por sinal) e algumas promoções do Sílvio Morais com seu concurso de calouros: quem tinha instrumento, se acompanhav a, quem não tinha, ia à capela mesmo. Como eu, aos cinco anos, cantando "Que tudo vá para o inferno" (que hoje Roberto Carlos se recusa a cantar) e ganhando uma graninha num envelope, que ficou guardado numa gaveta "prum momento de precisão" (quem leu a história do bolo sabe de onde saiu o dinheiro pra comprar o pudim no bar do Fued Maluf).
Pois foi num domingo destes, quando a primeira música sempre tinha que ser o Hino Nacional, que vi a cena: um bebum levando cacetada dos guardas (e depois foi pra cadeia, em Igarapava) porque não tirou o chapéu durante a execução.
Outro fato que me marcou (e dá para se avaliar a influência da igreja na vida comunitária, naquela época) foi quando acabei expulso das aulas de religião no Parque Infantil, com seis anos. Era 1968 e um bando de seminaristas apareceu por lá, com uma série de slides, com histórias da bíblia. E eu, criado dentro do espiritismo-cristão, já familiarizado com a teoria da evolução de Darwin, além de sempre ter ouvido minha mãe contar que a história de Adão e Eva era uma fábula criada para contar a história humana (e, segundo ela, teria acontecido mesmo, mas num local remoto quando a terra já era habitada), não agüentei quando o seminarista disse que antes de Adão e Eva não existia ser humano da terra.
Então, disparei, topetudo como sempre: "então, pode me explicar por que a Igreja não permite casamento entre irmãos se no começo foi assim?". E o pobre do seminarista, que tinha uns 17 anos (depois o conheci como padre, aqui em Franca, mas para minha sorte, ele não me reconheceu, já com 15 anos), respondeu: "Mas nunca houve isso!". Eu: "se Caim matou Abel e depois fugiu, se casou e teve os descendentes marcados por Deus, se não foi com uma irmã, foi com quem, se antes de Adão e Eva não havia ser humano?". O coitado ficou numa saia justa, gaguejou e, sem saber o que fazer, acabou com a aula.
No fim, o administrador da Usina (coitado, entrava em cada roubada!), instado pelo padre, quis saber de minha mãe o que estavam me ensinando. Ela já foi falando de suas convicções e pedindo para que o padre, se soubesse responder minha pergunta, que respondesse, porque eu (que já sabia fazer poesias que declamava à torto e direito, para minha mãe registrar em papel) tirava minhas próprias conclusões do que via e ouvia.
Só fui ter aulas de catecismo aos 8 ou 9 anos, depois que dona Altiva me orientou a fazer tudo direitinho, sem questionar, para não me sentir segregado (quem não assistia aulas de catecismo ficava no pátio e na minha época só eu e o Mariano - aliás, onde anda ele -, que era evangélico, ficávamos no pátio). Pra não aumentar a pinimba da minha mãe com a Igreja Católica (logo vou contar os outros ocorridos entre dona Altiva - que adorava João XXIII - e os padres da Usina), resolveu-se deixar por isso mesmo. Mas ela sempre lembrava-se desta história, divertida, vendo que os seus esforços pra me incutir cultura e o gosto pela leitura e pela observação de tudo o que me cercava, tirando minhas próprias conclusões, estavam recompensados.
Um comentário:
oi...nossas suas historias me cativa,voce e o tipo de pessoas que tem muito para contar..e percebemos o quanto vc tem orgulho de sua mae..lindo demais isso...beijos em seu coraçao...Hebe
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